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Nise: O Coração da Loucura


Sob a produção e direção executiva de Roberto Berliner, a película apresenta um cirúrgico e verossímil testemunho de uma psiquiatra nos anos 1950, contrária aos tratamentos convencionais da esquizofrenia empregados na época, e que, por suas posições contrárias aos da maioria, acabava desvalidada por seus colegas. Ela, então, ao assumir o setor de terapia ocupacional do hospital onde trabalhava, propôs uma nova forma para lidar com seus pacientes: difundido amor e alimentando o interesse pela arte.


A exuberante biografia cinematográfica de Nise é, além de obra fiel a um período de tratamento médico desumanizado e monstruoso da história brasileira, um retrato que joga luzes a um cenário de vidas precárias. Nise Magalhães da Silveira foi uma médica psiquiatra brasileira, que cursou a Faculdade de Medicina da Bahia nos anos 20, onde formou-se como a única mulher entre centenas de homens. Logo após terminar sua especialização, foi aprovada em um concurso de psiquiatria e começou a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha.


Reconhecida mundialmente por sua contribuição à psiquiatria, Nise dedicou sua vida ao trabalho com doentes mentais, manifestando-se radicalmente contra as formas que julgava serem agressivas típicas dos tratamentos de sua época, tais como o confinamento em hospitais psiquiátricos (manicômios), eletrochoques, insulinoterapia e lobotomia. Nise foi, outrossim, pioneira ao enxergar o valor terapêutico da interação de pacientes com animais.


As pegadas da história que valem ser rememoradas a partir de Nise se dão no Manicômio Engenho de Dentro, localizado no Rio de Janeiro, no ano de 1944, ao ser reintegrada ao serviço público depois da repressão e enclausuramento sofridos por conta do governo varguista em virtude da ideologia comunista, da qual era filiada. Alocada naquele manicômio, a médica pôde retomar e progredir na crença de um tratamento mais humanizado, rompendo com as práticas terapêuticas que assolavam as ciências médicas de então. Reduzida a função de terapeuta ocupacional, incompatível com sua formação de psiquiatra, Nise aceitou o cargo certa de que traria mudanças e de que deixaria um legado ao reinventar as práticas de terapia e cuidado da saúde mental na ciência médica brasileira, fatores estes que, mais tarde culminaram nas reformas psiquiátricas e na luta antimanicomial.


Com forte influência da psicologia junguiana, de quem foi aluna, arteterapia e interação animalesca (contato com animais), Nise foi capaz de comprovar um progresso indubitável dos pacientes que frequentavam o seu setor, propositalmente sucateado e sabotado pelos seus superiores. Após o inquestionável progresso das práticas de Nise e a pelo acosso, a psiquiatra fundou em 1956 uma clínica voltada ao processo de reintegração social e reabilitação psiquiátrica.


A Casa das Palmeiras foi projetada como um espaço intermediado pela vida em sociedade e o tratamento clínico, prefigurando-se como um local para a expressão artística e de cuidados humanizados dos pacientes. Com a crescente notoriedade de Nise, antenada com as revoluções psiquiátricas mundiais e com reformas jurídicas, principalmente, a dignidade da pessoa humana e dos direitos sociais após a Segunda Guerra Mundial.


A OMS, em 2002, abriu uma conferência destinada, especialmente, para tratar sobre a questão da saúde mental a partir de um tratamento humano, projetando a necessidade de reformas legislativas mundiais. Muito embora o panorama cinematográfico se valha de uma premissa psico-clínica, é possível vislumbrar uma leitura jurídica sobre a interpretação das garantias fundamentais e da condição de indivíduo, ‘pessoa’ para o texto constitucional, e o sacrifício não pretendido de uma liberdade por parte dos pacientes vitimados.


Para aquele recorte epocal, a loucura era um processo de desligamento da individualidade de direitos: em vez de as garantias protegerem, elas legitimavam barbáries por meio de tratamentos nada paliativos, operando o desaparecimento da personalidade jurídica como verdadeiro mecanismo usado para legitimar o tratamento desumanizado supostamente validado pela ciência daqueles tempos. A ciência, subversivamente, fazia a lei e validava atrocidades.


Faz-se refletir, então, a interpretação do texto constitucional de outrora que dava permissividade para subverter a condição do indivíduo quando este se recusa a submeter-se a um padrão socialmente aceito, relegando-o, essencialmente, ao abandono numa vida para fora da proteção constitucional. Não podemos deixar de encarar como uma tarefa inarredável a definição de quem são os indivíduos protegidos constitucionalmente, quem são categorizados como indivíduos para a constituição e como essa subversão de garantias fundamentais foi possível.


Com tal obra, é importante refletir sobre como os direitos sociais devem estar corretamente alocados e bem distribuídos na carta máxima do Estado Brasileiro, para que tenhamos uma visão crítica da condição de indivíduos que não fazem jus à repulsa social e de um desmonte de estatutos da proteção a esses grupos vulneráveis. Mas, também, por fim, entender quais são os direitos fundamentais que nos foram providos e como são facilmente violados. A obra em questão nos permite refletir, criticar e nos chama a atenção sobre um passado não tão distante que insiste em voltar.

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