Por Fabricia Santos
Lançado em 31 de novembro de 2019, AmarElo, terceiro e mais recente álbum do rapper Emicida já é considerado um dos melhores trabalhos musicais da década. Vencedor de vários prêmios nacionais e internacionais, dentre eles o Grammy Latino, o álbum sugere por meio do seu título que o amor é o elo e que, somente por meio dele, é possível unir as diferenças e anular o ódio enquanto estratégia político-social.
O disco conta com várias referências musicais, sendo as principais o hip-hop e o samba, além de diversas parcerias que deixam o álbum uma verdadeira obra de arte. Emicida propõe um dualismo para expressar um eu-lírico que fala sobre amor, amizade e afeto e, ao mesmo tempo, aponta para o que há de mais doloroso e visceral na realidade brasileira. São 11 faixas que falam do cotidiano, seja ele visto pelo prisma do “pequenas alegrias da vida adulta” ou pelos versos duros de “Ismália”. Como o próprio Emicida diz, o álbum AmarElo faz parte de um experimento social que parte da pergunta: seria possível transformar os lugares com música? Façamos algumas considerações sobre esse questionamento.
A Constituição prevê uma série de direitos e objetivos para promover a dignidade da pessoa humana e tornar o Brasil um país menos desigual e, apesar das diversas interpretações sobre tais direitos e objetivos, todos concordamos que, se minimamente seguida, nossa Carta Magna garantiria uma realidade completamente diferente do que os nossos olhos veem no dia-a-dia. Seria o direito incapaz de garantir e promover o que a Carta Constitucional prevê? E o mais importante aqui nesse texto, seria possível transformar os lugares com música?
Ao simplesmente ouvir AmarElo é certo que as garantias constitucionais não serão colocadas em prática no mundo fático. Então o que Emicida quis dizer com transformar os lugares com música?
O objetivo desta indicação não é entrar em questões profundas sobre interpretação constitucional, judicialização da política, ciência política ou direito e arte. Aqui, cabe apenas entender que o álbum ultrapassa os limites da música (se é que um dia eles existiram) e que toca em pontos sensíveis sobre concretização de direitos no país, sem perder, é claro, o afeto e a poesia que o amor é capaz de conectar.
A premissa é a de que a arte, nesse caso a música, é um importante e fundamental instrumento para a promoção e afirmação de direitos, uma vez que as garantias jurídicas exigem mais que declarações e imposições normativas para serem percebidas na realidade.
Nesse contexto, o discurso jurídico tradicional dirá que, conforme o texto constitucional em seu artigo 5, inciso XLII , racismo é um crime inafiançável e imprescritível. Porém, por meio de músicas como “Ismália” é possível entender como o racismo é latente na sociedade e como ele estrutura a organização social do país - os versos dessa canção permitem envolver todos que a escutam na afirmação de que “ a felicidade do branco é plena, a felicidade do preto é quase”, levando-os, talvez, a superarem seu contexto existencial e experimentarem essa realidade por meio da música. Portanto, quando é perguntado “É possível transformar lugares por meio da música?”, a resposta é sim, pois o que a música retrata e possibilita é fundamental para desenhar a luta pela defesa de direitos. A música não é suficiente para mudar, de fato, os lugares, mas, por meio dela, é possível sentir a necessidade de mudá-los e/ou ressignificá-los , pois assim como diz Emicida na música Principia, “a música é só uma semente”. A música, como expressão artística, portanto, permite a imaginação criativa, a qual nos conecta enquanto pessoas e é o motor capaz de gerar mudanças na sociedade. A música não é a única capaz de gerar esse efeito, mas, é certo, que ela gera, e é desse princípio que AmarElo parte e se estrutura.
Em uma entrevista a Ronald Rivers, Emicida disse que sua estratégia com AmarElo é , em suas palavras, “devolver a calma para as pessoas, não a calma de uma forma apática ou de uma forma mansa, adestrada ou domada. Mas o extremo oposto, a calma como elemento que gera reflexão e faz a pessoa pensar de uma maneira estratégica”, haja vista que “o ódio enquanto estratégia falhou”. Sob esta perspectiva, o rapper propõe a todos uma imersão em nossa própria humanidade, falando de união, sem esquecer que há um grande abismo social que nos separa.
A primeira faixa do álbum “Principia” é a síntese de toda a pretensão musical e humanística do rapper em AmarElo, em parceria com a cantora Fabiana Cozza, com o coral das Pastoras do Rosário e com o Pastor Henrique Vieira. Emicida fala sobre espiritualidade, desigualdades sociais, superação e, especialmente de união, mostrando o caráter cortante e restaurador da música, além de sua pretensão enquanto artista musical no verso “minha voz corta noite como rouxinol, no foco de pôr o amor no hall”. Emicida costuma falar que “Principia” é um sonho, no qual o amor é proposto como regra e estratégia para as relações humanas.
Após o sonho, “Ordem natural das coisas”, trata sobre a hora de despertar, em parceria com a rapper Mc Tha, o rapper fala da vida vista a partir de quem acorda antes do sol, por meio da poesia e da melodia envolvente, é possível sentir toda beleza das minúcias do despertar do dia, antes mesmo de o "astro rei" as iluminar. Logo em seguida, "Pequenas alegrias da vida adulta", Emicida, em parceira com o instrumentista Marcos Valle e com o comediante Thiago Ventura, canta as coisas simples que dão sentido à vida e que é possível achar poesia nessas pequenas alegrias do cotidiano. Em "Quem tem um amigo tem tudo", o rapper juntamente com o sambista Zeca Pagodinho, canta o poder da amizade e como as relações interpessoais são fundamentais para a existência humana, afinal "quem divide o que tem, é quem vive pra sempre". "Paisagem", por sua vez, é uma crítica a uma sociedade que é incapaz de enxergar suas mazelas. Mediante a uma melodia calma e envolvente, Emicida escancara nossas incoerências e problemas enquanto sociedade, a música é um retrato do negacionismo das desigualdades do país, enquanto escutamos uma melodia calma, a letra nos apresenta a um estado de caos, como sugerido sarcasticamente no verso " como um bom cemitério tudo está em paz". Em seguida, "Cananéia, iguape e Iha comprida", desconstrói a visão atribuída aos rappers como pessoas que cantam o ódio, Emicida propõe um estado de poesia, no qual a melodia e a letra são um verdadeiro abraço, nesse sentido, o rapper diz que "pro mundo em decomposição, escrevo como quem manda cartas de amor". A sétima faixa "9nha", com participação da rapper Drik Barbosa, é uma carta de amor à uma arma, todavia, não se romantiza ou se faz apologia ao uso de armas de fogo, aqui se fala muito mais da humanidade de quem as porta do que do objeto em si. A oitava faixa "Ismália", com participação da cantora Larissa Luz e da atriz Fernanda Montenegro, é um grito, um grito suave que corta quem ouve, escancarando as implicações causadas por um sistema racista, ou pretende causar, na vida das pessoas negras. A música é um retrato da realidade de quem tem pele escura em um país que, a cada 23 minutos, mata um jovem negro, a dura realidade de quem, pela cor da sua pele, "quis tocar o céu, mas terminou no chão".
A nona faixa, por sua vez, é um outro grito, um grito de resistência, "Eminência Parda", com parceria da cantora Dona Onete e dos rappers Jé Santiago e Papilon, expressa a voz de quem por muito tempo foi silenciado, a música é considerada uma autobiografia de Emicida ao mesmo tempo em que transcende a sua pessoa. Nessa faixa, propõe-se a resistência e organização como estratégias para se alcançar a tão sonhada democracia racial. A penúltima faixa "AmarElo” é um convite à vida, com sample de "Sujeito de Sorte" do cantor e compositor Belchior e em parceria com as cantoras Pabllo Vittar e Majur, a música propõe a resistência enquanto arma, dessa vez não como organização social, mas como organização individual e psicológica, nesse sentido, o "te vejo no pódio" presente na música pretende estimular a determinação e a coragem, pois desistir dos nossos sonhos, seria, em primeira e última instância, desistir de nós mesmos. Por fim, a última faixa do álbum "Libre", com participação do duo Ibeyi, por meio de sua melodia dançante, nos convida a nos jogarmos em um lugar de liberdade gerado pela resistência, pela união, pelo autocuidado e pelo amor proposto em todo o álbum.
Como uma forma de Expressão Artística, AmarElo gera reflexões sobre a concretização de direitos e sobre os problemas estruturais do Brasil. O academicismo, presente não só nas faculdades, mas também nos tribunais brasileiros, tende a monopolizar essas questões, mas ao escutar um disco com a potência de AmarElo, percebemos que os debates fechados em salas entre magistrados não são suficientes para assimilar a real situação discutida. AmarElo aproxima o real da teoria, o formal do material, gerando, dessa forma, novas perspectivas para o direito.
Em suma, AmarElo é uma daquelas obras que gera um choque de realidade e, paralelamente, nos abraça e nos convida a gerar amor no mundo. A ideia é que é impossível resistir sem amor e que o amor é a única forma de resistência que gera mudanças benéficas nos lugares. AmarElo é a expressão de que é impossível mudar o mundo, sem mudarmos a nós mesmos.
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