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Restrição de direitos fundamentais em tempos de pandemia

Definir, com exatidão, a legitimidade de uma restrição a uma obrigação jurídica decorrente de uma norma de Direitos Fundamentais não é tarefa fácil. Nem se usarmos o critério do senso comum (“o seu direito acaba onde começa o dos outros”), nem se aplicarmos a métrica judicial da proporcionalidade. Recorrer, finalmente, à premissa de que os direitos fundamentais são relativos pode gerar resultados pouco úteis quando pretendemos investigar o grau de restrição suportado por direitos fundamentais durante uma pandemia mundial.

Pessoas transitando com máscara e sem máscara em tempos de Covid
Restrição de Direitos Fundamentais em Tempos de Pandemia

O Estado do Pará decretou lockdown (Decreto 729 de 05/05/20), com base na Constituição estadual (art. 135, III) e na Lei Federal nº 13.979/20. Muitos direitos fundamentais foram restringidos por força dessa conjunção normativa, entre eles: o direito de livre circulação, livre iniciativa, liberdade religiosa, propriedade etc.). Em razão da grave situação enfrentada pelos paraenses (e brasileiros), poucas pessoas questionaram, judicialmente, o grau de restrição imposto em razão da sua evidente necessidade.


Mas, para fins de reflexão, colocamos a seguinte questão: qual o grau de restrição legislativa pode ser, legitimamente, imposto aos direitos fundamentais durante uma pandemia vivenciada em período de normalidade no plano constitucional?


A convenção dogmática constitucional e as normativas internacionais asseguram a legitimidade de restrições a direitos fundamentais, desde que previstas no texto constitucional ou quando veiculadas por meio da produção do Poder Legislativo. Com base nessas premissas, nos parece ser possível sugerir alguns regimes de restrição a direitos fundamentais dos brasileiros:


1) Direito fundamental sob regime constitucional ordinário: regime no qual há a aplicabilidade plena das garantias constitucionais, sendo possível à corte suprema aplicar todo seu arcabouço protetivo (precedentes, tratados internacionais e conjunto de normas constitucionais). Nesse caso, a lei poderá restringir direitos, desde que proporcionalmente e sem afetar seu “núcleo essencial” (ADI 2.024).


2) Direito Fundamental sob regime constitucional extraordinário (estado de defesa e sítio). O que caracteriza essa hipótese de restrição é a alteração no padrão de proteção constitucional, que diminui na medida em que a situação extraordinária se agrave.


2.1) Direito fundamental restringido em seu núcleo essencial (art. 136, 1º, I): com a decretação do estado de defesa, o decreto possibilita ao Presidente atingir o núcleo essencial de alguns direitos (reunião, liberdade de expressão, circulação). Portanto, o alicerce protetivo a ser empregado pela corte deixa de ser o conjunto completo de regras e decisões judiciais, para as estipulações previstas no decreto. A autorização constitucional para que haja restrições nesse período só faz sentido se implicarem a diminuição do parâmetro de (1) e se atingirem o exercício do direito em seu núcleo.


2.2) Direito Fundamental suspenso (art. 139, IV): Nessas hipóteses, o núcleo essencial do direito é, completamente, afetado e bloqueado. A revisão judicial da corte não poderá lançar mão de toda a rede de proteção constitucional vigente em situações ordinária, e nem empregar o critério de proporcionalidade que empregaria em (1).


Tendo em vista que as restrições e suspensões dos direitos são permitidas pela Constituição, essa decisão política altera o parâmetro de revisão da corte. No caso brasileiro, nos parece, contudo, que estamos experenciando uma terceira hipótese de restrição de direitos fundamentais que precisa ser desenvolvida:


3) Direito Fundamental sob regime constitucional ordinário restringido em seu núcleo por lei emergencial. Os direitos fundamentais podem ser restringidos por lei (13.979/20) fundamentada em decreto de calamidade pública (Decreto Legislativo 6/20), mas a restrição não encontra autorização constitucional e os padrões protetivos completos e amplos se mantêm, para fins de revisão judicial da lei.


No entanto, pergunto: o decreto de calamidade pública congressual e a lei não justificariam as restrições? Depende. A resposta precisa levar em conta os seguintes questionamentos:


a) A calamidade pública não é uma categoria constitucional, mas legislativa (art. 65 da LC nº 101/00), cujos efeitos práticos se limitam aos âmbitos orçamentários e financeiros. Dessa forma, a lei 13.979/20 permite a restrição de direitos fundamentais para além da proporcionalidade e, por vezes, afetando seu núcleo essencial sem que tenha havido qualquer alteração no nível da normatividade constitucional;


b) Muito embora significativo em número (aprox. 100), os Estados que recorreram aos poderes emergenciais previstos nas Constituições (Espanha, Portugal, Chile) não se igualam em número aos que optaram por soluções no campo da legislação ordinária (Alemanha, França, Irlanda, Turquia, Brasil). No caso Brasileiro, pensamos, a instabilidade política e o risco de abuso de poder pelo atual presidente parecem ter militado favoravelmente à solução legislativa, uma vez que declarar um estado de defesa significaria alocar mais poderes ao Executivo. No entanto, declarar um estado de emergência não implica um automático abuso de poder (vide o caso espanhol); da mesma forma que soluções legislativas não representam, em todas as ocasiões, medidas constitucionais (vide os casos Turco e Húngaro);


c) A vigência de um padrão completo ou total de proteção de direitos fundamentais afeta o destino das soluções emergenciais legislativas, porquanto submetidas ao crivo da constitucionalidade ordinária. Esse estado de coisas tem afetado o parâmetro utilizado pelo STF, que precisa recorrer a fórmulas vazias e perigosas para interpretar a Constituição e aferir a legitimidade das soluções políticas legislativas, tais como: “excepcional (ADI 6357)”, “emergência”, “razoabilidade (ADI 6343)”, “estado de emergência (ADPF 661)”. A escolha política de operar no campo infraconstitucional pode ter escamoteado a vigência de um estado de emergência decretado pelo STF, uma saída tão ou mais perigosa do que aquela formalmente prescrita pelas normas constitucionais.


Mas o que vocês acham? As restrições aos direitos fundamentais são legítimas se feitas por leis? Estaríamos sob um estado emergência sanitária? Esse estado seria uma categoria albergada pela Constituição? Se alguém questionasse a constitucionalidade da lei 13.979/20, qual parâmetro constitucional o STF deverá utilizar para julgá-la?

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