Por Beatriz Beckman
Em “Como as democracias morrem”, Levitsky e Ziblatt ressaltam a importância de duas normas básicas que preservam o funcionamento dos freios e contrapesos institucionais encartados nas Constituições modernas. Em primeiro plano, temos a norma que demanda a tolerância mútua entre os poderes, para que estes consigam desenvolver suas funções de maneira independente e complementar, como opositores e não como inimigos. Em segundo plano, os autores mencionam a importância da contenção ou o comedimento entre os agentes políticos no exercício de suas prerrogativas institucionais.
Nessa perspectiva, aquela obra emprega o termo do constitucionalismo norte-americano – checks and balances - para referir-se à ideia de separação de poderes, cujas origens remontam a Aristóteles e que é posteriormente desenvolvida por Locke e Montesquieu. O conceito desse mecanismo se exprime na garantia contra excessos e abusos cometidos pelos poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário, mas sempre tendo em vista a importância da tolerância e do comedimento. A leitura federalista feita de Montesquieu e que influenciou a Constituição de 1987 preocupou-se com a arbitrariedade no exercício de uma função política de maneira concentrada por um único órgão, na hipótese daquele encapsular todos ou algum dos demais, mas que, por outro lado, poderia ser contido por meio da ação coordenada das próprias instituições, todas democraticamente eleitas. Ou seja, ausente nessa leitura estava a ideia de uma constituição mista, na qual a função da separação de poderes é garantir a representação institucional dos estamentos sociais que se controlariam mutuamente, cerne do pensamento constitucional de Montesquieu.
Nesse viés, essa separação de poderes de cunho norte-americana não se confunde com a leitura vulgar e corrente entre os meios políticos e jornalísticos brasileiros, segundo a qual o exercício exclusivo, sem dúvidas ou conflitos das matérias constitucionais caracterizaria aquela garantia institucional, ou seja, uma leitura baseada na ideia de que a separação de poderes exige total independência, competências exclusivas, e zonas de intangibilidade por parte de outros Poderes. Em suma, uma separação de poderes ao melhor estilo “cada macaco no seu galho”. Uma leitura que, a um só tempo, se afasta de Montesquieu e dos Federalistas.
Contemporaneamente, vislumbra-se um virtual conflito de papeis em que se argumenta haver um judiciário tentando legislar, um legislativo assumindo a função atípica de fiscalização e um executivo refém das instituições de fiscalizações e controle, fragilizando as instituições. No entanto, é importante detectar de que forma a nossa separação de poderes se estabelece dentro de nossa Constituição, e como vige entre nós o preceito dos freios e contrapesos para que possamos fazer diagnósticos mais acurados sobre uma possível violação à “separação de poderes”. Ainda que, é válido ressaltar, as regras de respeito mútuo e comedimento sejam sempre necessárias.
O Supremo Tribunal Federal tem sido visto como um agente que passara de espectador para o epicentro dos importantes debates jurídicos políticos. Nesse cenário, o Judiciário avança sobre temas essencialmente políticos, no quais o congresso e o executivo não assumem liderança, assim o “Ativismo Judicial”, a “Supremocracia” e a “ditadura do Judiciário” passaram a ser nomenclaturas usuais para remontar as responsabilidades dos juízes não apenas de legisladores negativos, mas também como legisladores positivos nocivos à Separação de Poderes. Muitas dessas conclamações não passarão de mera retórica, contudo, caso deixem de expor aos seus espectadores qual o sentido de separação de poderes que pretende empregar, uma leitura conservadora e tecnicista, segundo a qual o postulado pretende significar exercício monopolístico de competências constitucionais ou, por outro lado, uma leitura que compreenda as complexidades de incorporar o ideal de separação de poderes e de freios e contrapesos em uma Constituição transformadora que criou uma Suprema Corte onipresente.
O inquérito sigiloso instaurado regimentalmente por Dias Toffoli (Inq 4781), no dia 14 de março de 2019, tinha como finalidade apurar a midiatização de informações e notícias fraudulentas, ameaças e infrações que infligiam à honra e segurança do Supremo Tribunal Federal e de seus Ministros. Nessa perspectiva, o Supremo passou a ocupar o papel de órgão investigativo, acusatório e julgador, a demonstrar um arriscado flerte com um sistema inquisitivo divergente do sistema acusatório reverberado pela Constituição. Somado a isso, o relator não foi nomeado no formato de sorteio, mas indicado pelo Presidente da corte por meio de autorização regimental, acendendo alerta sobre a eventual violação princípio do juiz natural (Arts. 13, I e 43 do RISTF). Dessa forma, como denunciado por muitos outros juristas, a investigação judicial não parece legitimar-se pela normatividade constitucional, mas nas circunstâncias políticas que trazem risco à democracia.
No decorrer das investigações propostas no bojo do inquérito, o Ministro relator Alexandre de Moraes determinou a prisão em flagrante do Deputado Daniel Silveira, após a divulgação de um vídeo com ataques e incitação à violência contra integrantes do Supremo. De acordo com o ministro, as declarações de Silveira eram “gravíssimas”, e não somente do ponto de vista pessoal dos ministros, mas do ponto de vista institucional e de manutenção do Estado Democrático de Direito. O parlamentar defendeu, entre outras estultices, a volta do AI-5, o que atraiu, na visão de Moraes, a aplicação da Lei de Segurança Nacional.
No vídeo, o deputado conclama a subversão da ordem política e social, propaga ideias antagônicas à ordem constitucional, além de afirmar que:
“o que acontece Fachin, é que todo mundo está cansado dessa sua cara de filha da puta que tu tem, essa cara de vagabundo... várias e várias vezes já te imaginei levando uma surra, quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa corte [...]”
“Não é nenhum tipo de pressão sobre o Judiciário não, porque o Judiciário tem feito uma sucessão de merda no Brasil. Uma sucessão de merda, e quando chega em cima, na suprema corte, vocês terminam de cagar a porra toda. É isso que vocês fazem. Vocês endossam a merda. [...]”
Ademais disso, o Deputado Daniel Silveira recorreu a sua imunidade parlamentar para escusar-se de medidas judiciais por conta de seu discurso inflamado e golpista (art. 53 da CFRB/88). A imunidade parlamentar é prerrogativa conferida pela Carta Constitucional aos membros do Legislativo, para que esses possam desenvolver suas atividades com autonomia e independência. Nesse sentido, a imunidade parlamentar divide-se em formal e material. A primeira está relacionada à prisão dos parlamentares, de acordo com a qual estes não podem ter sua liberdade cerceada no exercício do mandato, exceto nas circunstâncias previstas constitucionalmente, ou seja, nas hipóteses de cometimento de flagrante de crime inafiançável (Art. 53, § 2º). No âmbito material, por sua vez, temos a inviolabilidade penal e civil dos deputados, para que haja a amplo e efetiva propagação de opiniões, ideias e propostas legislativas.
Em consonância com a jurisprudência do STF a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar não podem ser consideradas direitos absolutos. Nesse ínterim, o parlamentar não poderá exceder os limites da inviolabilidade parlamentar respaldado na livre expressão de pensamento, haja vista que a liberdade de expressão só é associada a imunidade do congressista para salvaguardar a liberdade de atuação do parlamentar, no desempenho de suas atividades de forma comedida e no âmbito do respeito mútuo institucional. Dessa maneira, a imunidade parlamentar limita-se ao direito do parlamentar de deliberar qualquer ato ou expressão no exercício e em razão de seu mandato, ficando de fora desse âmbito de proteção a agressão contra ministros do STF e a derrubada do regime democrático.
Assim, o deputado ainda que tenha se valido do fundamento de que, como cidadão, seria titular da liberdade de expressão e como deputado federal, ter direito a imunidade parlamentar, assegurando autonomia para deliberar e articular sob sua boa vontade sem ser incomodado, esses argumentos não parecem ser suficientes para justificar a violação das normas que embasam, em primeiro lugar, o funcionamento de um sistema de freios e contrapesos. Dessa maneira, a imunidade parlamentar e a liberdade expressão são prerrogativas que devem ser usadas em favor da democracia e não para solapá-la. Ainda que seja um tema espinhoso, não é possível defender que congressistas possam tudo dizer ancorados na imunidade parlamentar. Se uma interpretação elástica da imunidade se justificou na constituinte para salvaguardar os congressistas de cassações ilegais, não nos parece possível defender que a imunidade os coloque acima da proteção à democracia e a suas instituições.
Dessa forma, não obstante as manifestações de Silveira extrapolarem os limites que perfazem sua imunidade parlamentar constitucionalmente asseguradas, o inquérito que embasou sua prisão, nada obstante referendado pelo plenário, nos parece carecer de força jurídica para existir, a demonstrar que a corte extrapolara suas competências jurisdicionais. Em razão da prisão sofrida e pelo vício original que carregava consigo, Moraes arquivou-o e, incontinenti, instaurou outro inquérito de conteúdo semelhante.
O sistema de freios e contrapesos de uma Constituição depende de duas normas para funcionar própria e regularmente, respeito mútuo e comedimento. Mas o que fazer quando uma das partes pretende subverter a democracia e colocar em xeque a independência dos demais poderes, especialmente a do Judiciário? O que fazer quando as instituições de investigação e controle, como a PGR estão cooptadas pelo discurso autoritário do chefe do Executivo e de seus seguidores? O STF estaria legitimado a escapar do texto legal e da Constituição para defender nossa democracia? Essas são perguntas que expõe os dilemas levados diuturnamente ao STF, que a pretexto de garantir o Estado Democrático de Direito aparenta extrapolar suas competências constitucionais.
Entretanto, se levarmos em conta o que muitos constitucionalistas têm dito sobre o estado periclitante de nossa saúde constitucional e democrática, a interpretação da constituição não pode arvorar-se em formalismos que amarrem as mãos da corte e a impeçam de reagir à ataques que ameacem a existência da própria ordem constitucional. Dessa forma, a compreensão sobre os freios e contrapesos dentro desse contexto de erosão democrática não pode furtar-se do conflito político inerente ás relações políticas, uma vez que o exercício das competências constitucionais de órgãos funcionalmente especializados só fará sentido se ainda existirem normas constitucionais.
Referências
DIAS, Roberto, LAURENTIIS, Lucas de. Imunidades parlamentares e abusos de direitos, uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista de Informação Legislativa. Brasília, 2012, a. 49 n. 195.
KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LEVITSKY, Steven, ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução: Renato Aguiar. 1 ed. São Paulo: Zahar, 2018.
LORENZETTO, Bruno Meneses, PEREIRA, Ricardo dos Reis. O Supremo Soberano no Estado de Exceção: a (des) aplicação do direito pelo STF no âmbito do Inquérito das “Fakes News” (Inquérito n. 4.781). Florianópolis: Sequência [online]. 2020, n.85, pp.173-203.
RECONDO, Felipe. Tanques e togas: o STF e a ditadura militar. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV. São Paulo, 2008, pag. 441-464.
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