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A ADPF 709, os direitos fundamentais dos povos indígenas e a crise sanitária.

Arthur Almeida, Gabriel Moraes e Matheus Baia.



No início de julho de 2020, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709), de relatoria do Min. Luís Roberto Barroso, pode representar um importante marco para a jurisdição constitucional, uma vez que fora proposta, em litisconsórcio ativo, por articulação indígena não estruturada na forma de pessoa jurídica de direito privada e não ligado à FUNAI – a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A APIB, aliada a partidos políticos, propuseram a ação visando a tutela dos direitos fundamentais dos povos indígenas relativos ao combate à COVID-19, especialmente em razão do elevado de risco de contaminação e mortalidade nas terras tradicionalmente ocupadas.

Ao acolher, em parte, os pedidos cautelares, o Min. Barroso obrigou a União à formular, no prazo de 30 dias, um plano de enfrentamento da Covid-19 para os povos indígenas, que deveria contar a com a participação obrigatória das comunidades indígenas. O ministro incumbiu o monitoramento do plano aos atores implicados e sujeito sua execução à homologação do juízo. Em suas próprias e imodestas palavras, o ministro sustenta que as medidas cautelares determinadas “são uma experiência pioneira de diálogo institucional (entre o Judiciário e o Executivo) e de diálogo intercultural (entre a nossa cultura e as tradições indígenas)”.

Um mês após o deferimento da medida, a União apresentou a 1ª versão do Plano de Enfretamento e Monitoramento da COVID-19 para Povos Indígenas Brasileiros. A APIB e as demais entidades envolvidas na causa indicaram uma série de imprecisões do plano, tendo o ministro destacado que o plano se estendia sobre ações realizadas, mas pouco sobre o que deveria ser feito e, neste ponto, as medidas eram por demais genéricas. Por essa razão o ministro instou a União a aperfeiçoar o plano. A 2ª versão do plano foi, igualmente, rejeitada pelo ministro, em outubro do ano passado, sob a justificativa de não dispor detalhadamente sobre ações, metas, critérios, indicadores e cronograma de execução. Por fim, a 3ª versão teve negada sua homologação em dezembro de 2020 com base nos mesmos argumentos anteriores.

Finalmente, a 4ª versão do plano foi parcialmente homologada em março deste ano (2021), uma vez que o plano não atendia ao delineamento proposto na cautelar, indicando, na visão do relator, um problema de coordenação e gestão do Governo, e não propriamente de resistência ao cumprimento da cautelar. É importante destacar que a homologação parcial foi motivada pela situação urgente, em face do avanço da pandemia.

Os diferentes planos de enfrentamento e monitoramento da COVID-19 para os povos indígenas que foram apresentados ao longo da Ação, mesmo a quarta versão parcialmente homologada, não abordaram, cabalmente, o aspecto da vacinação, medida fundamental para a contenção da pandemia. A APIB entrou, então, com um pedido de aditamento à inicial requerendo que fosse assegurada a prioridade na vacina não somente dos povos que habitavam terras homologadas pela União (o que estava previsto no Plano Nacional de Vacinação), mas também aos povos indígenas de terras não homologadas, assim como previsto para os aldeados em terras demarcadas na primeira versão do PNI. O relator recebeu o requerimento como petição, entendendo não ser necessário sequer postular aditamento à inicial, pelo fato de considerar a vacinação providência essencial ao plano de enfrentamento em elaboração.

A grande controvérsia que acompanha a ADPF 709, desde sua origem, tem relação com as sucessivas tentativas de forçar uma distinção, por parte dos órgãos governamentais, entre indígenas que vivem em terras homologadas e aqueles situados em terras não homologadas, o que representa um risco para essa população como um todo. A quinta versão do Plano Nacional de Imunização (PNI) insere no grupo prioritário, aqueles grupos de elevada vulnerabilidade social, dentre elas as populações indígenas, que possuem fragilidade imunológica para doenças como a COVID-19, além do modo de vida culturalmente coletivo e a sua distância geográfica de um serviço especializado de saúde, agravando o fator de risco. No entanto, o mesmo plano traz como estimativa populacional o número de 413.739 indígenas, os quais representam apenas a parcela que vive em terras homologadas. Embora observem que, em razão da ADPF 709, foi incluída a extensão do serviço do SASISUS (Subsistema de Atenção à Saúde Indígena-SUS) as populações situadas em terras não homologadas, tal omissão no cálculo é preocupante.

Segundo dados do Governo, constam atualmente 680 processos demarcatórios, dentre os quais 457 referem-se à processos regularizados e 223 não finalizados. Uma das fases para o reconhecimento de terras indígenas, após etapas regulares no processo administrativo de demarcação, é a homologação por Decreto presidencial, passando a área a integrar propriedade da União, mas de posse tradicional do povo tradicional. Um obstáculo no atual cenário, contrário às políticas indigenistas. O último censo realizado pelo IBGE em 2010 estimava cerca de 896.000 a população de índios do país, 502.783 vivendo na zona rural e 315.180 em zona urbana, ou seja, mais da metade estaria fora do grupo prioritário da vacina, de acordo com os números apresentados pelo PNI, ferindo diretamente suas garantias constitucionais.

Outro ponto delicado tratado na presente ADPF diz respeito ao tratamento diferenciado dispensado aos povos indígenas não aldeados, ou seja, aqueles localizados em zonas urbanas. A Secretária Especial de Saúde Indígena (SESAI) e a FUNAI limitavam o atendimento especializado do SASISUS aos índios situados nas aldeias, remetendo os urbanos ao SUS geral. A Advocacia-Geral da União afirmou a incapacidade operacional da SESAI para atender aqueles indígenas não aldeados e que, pelo fato destes já estarem cobertos pelo SUS. O relator divergiu desta interpretação, não considerando política pública discricionária, mas sim decisão violadora de direitos. O ministro decidiu que, pelo fato de uma possível extensão poder levar a precarização do atendimento, o serviço do SASISUS deveria ser garantido aos indígenas não aldeados sem acesso ao SUS, indeferindo a extensão requerida à totalidade da população indígena urbana.

A mesma medida cautelar na ADPF 709 que versa sobre a vacinação dos povos indígenas acima exposta, também toma a importante medida de suspender a Resolução nº 4/2021 da FUNAI. Os motivos de tal declaração jogam luzes à uma realidade ampla de violações sistemáticas dos direitos fundamentais de povos originários perpetradas pelo atual Governo, pois apesar das vitórias parciais alcançadas na presente ADPF, a efetivação das garantias fundamentais desses povos ainda está distante, principalmente em um contexto de acentuação de vulnerabilidade na atual conjuntura pandêmica.

O ponto central desse ato administrativo é a adoção do critério ‘habitação’ da pessoa em territórios demarcados como elemento principal para a identificação do sujeito enquanto indígena. Esta política, segundo Barroso, violava os artigos 215, 216, 231 da Constituição, nos quais se afirmam a necessidade de proteção especial de tais povos pelo Estado brasileiro. Além disso, a resolução viola uma das determinações da cautelar que estabeleceu a autodeclaração como critério fundamental para a identificação dos povos indígenas.

Por mais que a suspensão do ato normativo da FUNAI seja vital e demonstre um compromisso com os direitos dos povos originários, assim como todas as outras importantes conquistas que a ADPF trouxe (com relevância específica para as provisões sobre a vacinação expostas aqui), ela é apenas um pequeno passo na direção correta e necessária. Feitas essas considerações, seguem alguns pontos que precisam ser posteriormente desenvolvidos:


1) O reconhecimento da legitimidade ativa da APIB para atuar perante o controle de constitucionalidade não significa que o STF tenha superado sua interpretação restritiva a respeito das entidades de classe de âmbito nacional, as quais têm de ser estabelecidas na forma demandada pelo direito privado e agregarem em sua formação uma classe profissional ou econômica para serem reconhecidas como entes dotados de legitimidade. É muito provável que a corte tenha identifica uma exceção específica para os povos tradicionais, levando em consideração o disposto no art. 232 da CRFB/88, que assegurou às organizações indígenas a representação judicial e direta de seus direitos e interesses;


2) Ainda que não tenha declarado um Estado de Coisas Inconstitucional no caso, ou identificado uma situação de litígio estrutural, a corte lançou mão de critérios decisório flexíveis e estranhos ao controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que entabulou um denominado diálogo entre poderes pautado pela elaboração de planos de ação que deverão ser formulados pelo Governo, homologado em juízo e monitorado pelos atores involucrados no tema. Essas medidas elastecem o sentido do descumprimento de um preceito fundamental e atribuem à corte a importante competência de gerir acordo sobre a aplicação e interpretação de direitos fundamentais, para além de sua função de órgão que edita decisões baseadas no binômio ‘constitucional/inconstitucional;


3) A forma integracionista de pensar a questão indígena esposada pelo governo de turno, segundo a qual o pertencimento a esses povos é dependente de um reconhecimento ativo do Direito estatal não-indígena (como no caso de atrelar-se a identificação com a habitação em terras demarcadas pelo governo), continua presente apesar de sua incompatibilidade com a Constituição de 88, na qual está assegurada a autonomia desses povos. Essa visão impõe ao indígena a condição de “objeto de direito”, para o qual suas garantias fundamentais não existem em função de seu status de sujeito, mas sim de uma concessão por parte do Estado. O ato administrativo governamental passa a funcionar como um elemento voluntarista que determina quais são as pessoas que terão direito a ter direitos com base em critério que não encontra respaldo constitucional e na legislação internacional pertinente;


4) Garantir a efetivação dos direitos fundamentais das populações originárias —tanto seus direitos sociais quanto sua autonomia e capacidade para autogestão — é um projeto longo e que dependerá de mudanças em todas as esferas do poder, iniciando pela remoção dos resquícios racistas e integracionistas das políticas públicas. Nesse sentido, somente o processo judicial incidental não consegue promover a mudança na magnitude necessária. Entretanto, a própria ADPF 709 aponta para um modo alternativo de atuação do judiciário por meio da categoria do “processo dialógico” que permite a ele lidar efetivamente com questões mais amplas.

É visível portanto o esforço da Suprema Corte na proteção dos direitos das populações indígenas em estabelecer não somente uma solução imediata para um problema individual, mas ao atuar trazendo para a mesa de discussão as instâncias competentes do poder público e representantes das comunidades cujos direitos estão sendo violados durante a pandemia. Todavia, como já dito, serão necessárias inúmeras ações nesses moldes para que alguma mudança substantiva seja alcançada, e a ADPF 709 pode atuar como um modelo inicial para modelar a atuação futura do judiciário no campo dos Direitos Fundamentais.


LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO:






Vacinação contra Covid-19 é mais lenta para indígenas da Amazônia. Transparecia COVID-19, 2021. Disponível em: https://transparenciacovid19.ok.org.br/files/AMAZONIA_Transparencia-Covid-19_Boletim_4.pdf. Acesso em: 28 de março de 2021.


Apib recorre ao STF para garantir vacinação de indígenas. APIB Oficial, 2021. Disponível em: https://apiboficial.org/2021/01/29/apib-recorre-ao-stf-para-garantir-vacinacao-de-indigenas/. Acesso em: 27de março de 2021


STF determina o atendimento em saúde para indígenas residentes em áreas urbanas e terras não homologadas. Correio de Corumbá, 2021. Disponível em: https://www.correiodecorumba.com.br/?s=noticia&id=39872. Acesso em: 27 de março de 2021.


STROPASOLAS, Pedro; GIOVANAZ, Daniel. Terras não demarcadas dificultam acesso de indígenas a vacina e políticas públicas. Brasil de Fato, 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/03/23/terras-nao-demarcadas-dificultam-acesso-de-indigenas-a-vacina-e-politicas-publicas. Acesso em: 27de março de 2021.


FUNAI: Fundação Nacional do Índio, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br. Acesso em 27 de março de 2021.


Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a COVID-19, 5ª ed, 15 de março de 2021. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/marco/23/planovacinacaocovid_ed5_15-mar-2021_v2.pdf. Acesso em: 26 de março de 2021.


Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a COVID-19, 1ª ed, 16 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2020/dezembro/16/plano_vacinacao_versao_eletronica-1.pdf. Acesso em: 26 de março de 2021


O Direito à Saúde dos Povos Indígenas e os Desafios do Enfrentamento da Pandemia da Covid-19 no Contexto de Retorno da Política Indigenista Integracionista no Brasil.(pdf)


Um “fato social total”: COVID-19 e povos indígenas no Brasil.(pdf)


UM ESTUDO SOBRE A ADPF 709: ENTRE LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA E PARALISIA DECISÓRIA.(pdf)


PROCESSOS ESTRUTURAIS E COVID-19: EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE EM TEMPOS DE PANDEMIA.(pdf)


Covid-19 e políticas anti-indigenistas no Brasil: o caso da adpf 709/df para o reconhecimento do direito de existir.(pdf)




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