O Supremo Tribunal Federal sempre buscou se apresentar para a sociedade como uma corte plural e aberta, com amplo acesso àqueles que buscam acionar a jurisdição constitucional. A dogmática jurídica, por sua vez, pinta a Corte como uma instituição imparcial, inclusiva, democrática e garantidora dos direitos fundamentais de todos, sem distinções.
No entanto, o discurso oficial e a teoria não refletem a prática. Ao analisarmos a jurisprudência da corte sobre a legitimidade ativa no controle abstrato de constitucionalidade, o STF decide de maneira seletiva, quanto ao acesso de determinados grupos sociais à corte. Ao exigir das organizações da sociedade civil a pertinência entre o ato questionado e suas atividades estatutárias (pertinência temática) e ao interpretar “classe” a partir de uma leitura econômica, a corte passou a atrair entidades que levavam à corte temas e assuntos corporativos. O que explica, por exemplo, porque a pauta da corte está abarrotada de temas sobre a Organização do Estado.
Nos últimos anos, não obstante a corte tenha avançado na jurisprudência concernente aos direitos de minorias e grupos vulneráveis, a exemplo do aborto de fetos anencéfalos (ADPF 54), da união homoafetiva (ADI 4277), mudança de nome para transexuais (ADI 4275) e das ações afirmativas de cunho racial (ADPF 186 e ADC 41), nenhum desses casos emblemáticos foi levado à apreciação do Supremo pelos movimentos sociais representantes dessas minorias.
Tal prática revela não somente um problema de acesso à justiça, mas também uma quebra de isonomia, pois nem todos possuem o mesmo de direito de acesso à jurisdição constitucional para debater suas pautas a partir de suas próprias vozes, sendo tais grupos sociais impedidos de protagonizar suas causas em sede de jurisdição constitucional e de veicular abertamente seus entendimentos constitucionais, devendo sempre valer-se da benevolência de intermediários para terem suas vozes ouvidas em sede constitucional.
A falta de representatividade e impacto também pode ser observada quando esses grupos têm a oportunidade de terem seu dia na corte: na apresentação de memoriais, manifestos, como amigos da corte (amicus curiae) ou em audiências públicas. Longa da retórica democrática que embasa esses institutos, as interpretações dos ministros não são impactadas por essas manifestações, entre outras razões, principalmente pelo fato de os ministros já chegarem ao plenário com seus votos prontos.
Tal seletividade social também se observa nos “despachos” realizados pelos ministros da corte, os quais carecem de transparência, tendo em vista que os advogados de algumas partes possuem melhor trânsito que outros no Tribunal, já que tal prática não possui regulamentação sobre como devem operar. A falta de equidade faz com que essas audiências privadas funcionem, em verdade, como uma barreira oculta que separa aqueles que terão seus “embargos auriculares” apreciados, daqueles que não terão a mesma sorte.
Além da preocupante seletividade na recepção e julgamento das demandas de determinados grupos sociais em detrimento de outros, percebe-se, ademais, que os fatores que influem nas decisões dos ministros, muitas das vezes, não são jurídicos.
Entre os fatores que influem no resultado de um julgamento coletivo da corte estão, por exemplo, a inimizade ou proximidade entre os ministros, a hierarquia entre os membros mais antigos e os mais novos, as tentativas ou não cumprimento de certas tradições procedimentais internas da corte (como a ordem de leitura dos votos) pelos membros mais novos, o que pode causar estresses momentâneos.
Elementos institucionais dificultam ou inviabilizam o cumprimento de certos propósitos oficiais da narrativa da instituição. O isolamento e afastamento dos ministros entre si impede, por exemplo, que haja uma deliberação com ponderações e concessões/mudanças de entendimento sobre temas constitucionais relevantes, forçando a construção de um eventual diálogo para o momento da sessão.
O fato de as sessões serem públicas e abertas, e com a permissão da cobertura pela mídia, exigências formuladas para atender ao critério da transparência, acaba dificultando a espontaneidade de uma deliberação genuína entre os ministros, uma vez que a cobertura televisiva acaba por criar narrativas artificiais e cinematográficas, a partir do destaque de trechos de debates entre ministros em sessões, inibindo-os a reiterarem tais diálogos publicamente. A construção de narrativas televisivas impactantes pode favorecer a propagação de leituras parciais, incompletas ou errôneas sobre o processo deliberativo da corte e do resultado alcançado na votação. Quem assiste trechos editados das sessões recheados de frases de efeito não saberá o conteúdo da decisão da corte.
Alguns ministros lançam mão de estratégias não jurídicas para influir no julgamento e “convencimento” dos demais membros. A leitura longa, pausada e demorada de um voto pode servir, tanto para a construção de uma maioria a partir das explicações mais detalhadas de suas razões de decidir, como para cansar os demais ministros e, a partir de uma possível desatenção, induzi-los a votar em determinado sentido. Não são incomuns imagens dos ministros cochilando ou conversando entre si durante julgamentos históricos para o país. O pedido de chamamento do intervalo e de vista do processo também são recursos usados para desconcertar/desconcentrar algum ministro que esteja proferindo seu voto, para acalmar discussão acalorada, retardar a solução de uma demanda importante ou usar o tempo do processo como barganha política.
Diferentemente do que a dogmática tradicional cria em sua narrativa sobre a estruturação dos propósitos, valores e posturas oficiais de uma corte com atribuições constitucionais, tais como a justificação de suas práticas ritualísticas, construção coerente e principiológica dos fundamentos jurídicos de suas decisões, sistematização dos precedentes vinculativos e etc., não podemos deixar de demonstrar que os fatores que incidem durante um julgamento apontam para outras direções.
É preciso, como forma de compreensão do papel da corte em nossa democracia, distinguir a narrativa oficial e teórica, que formulam valores a partir dos quais as instituições devem pautar sua atuação (acesso amplo à sociedade e coerência decisória), da explicação sobre o funcionamento diário desta importante instituição. Uma melhor compreensão das atividades do STF nos permitirá formular sugestões, hipóteses e teses capazes de alterar suas práticas em direção à proteção efetiva dos direitos fundamentais.
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