Na ausência de padrões constitucionais e legislativos mais claros, quais critérios o STF utiliza para atestar a natureza criminosa de um discurso?
Fixar padrões judicialmente manejáveis é uma das funções de uma boa dogmática jurídica e de um corpo jurisprudencial coerente. Talvez o padrão mais conhecido dos juristas brasileiros seja a proporcionalidade. A ausência desses padrões pode trazer prejuízos para a proteção de Direitos Fundamentais quando cortes preferem lançar mão de teses casuísticas para solucionar conflitos, como, por exemplo, os casos que envolvem “discurso de ódio”.
Em 2003, uma pessoa que escreveu livro de cunho negacionista (negava o holocausto) foi condenada pelo plenário do STF por ter cometido crime de racismo. Seu discurso, portanto, não estava protegido pela liberdade de expressão, pois aquelas ideias, caso postas em prática, trariam riscos à vida e à integridade dos Judeus (HC 82.424/RS).
Treze anos depois, a primeira turma do STF absolveu padre por ter publicado livro que menosprezava e incitava os leitores a queimarem e destruírem textos, livros e objetos pertencentes a religiões de matrizes africanas e da religião espírita (RHC 134.682/BA).
Aparentemente, a corte deveria chegar ao mesmo resultado, caso aplicasse o mesmo teste criado em 2003. No entanto, um novo padrão fora estabelecido: o padre não defendeu a escravização, exploração ou eliminação de pessoas de outras religiões. O aspecto da eliminação física parece ter sido determinante para sua absolvição, uma vez que desabonar religiões alheias estaria dentro do campo da liberdade de religião e do proselitismo.
Além do problema dos padrões juridicamente manejáveis, em casos de liberdade de expressão e discurso de ódio, enfrentamos uma dificuldade adicional: não sabemos com certeza quando uma manifestação adentra nas raias do ódio. Sua caracterização dependerá da intencionalidade do agente, das sensibilidades do receptor ou de um parâmetro determinado por um juiz no momento do julgamento?
Feitas essas considerações, os seguintes pontos podem ser aprofundados pela doutrina e jurisprudência:
1) Padrões juridicamente manejáveis não são capazes de antecipar o resultado de um caso, mas direcionam a atividade interpretativa e podem servir de meio racionalizador dos argumentos constitucionais, desde que não aplicados ou criados casuisticamente;
2) A falta de testes ou padrões para solucionar casos que envolvam “discurso do ódio” perpetuará soluções contraditórias, além de indicar uma escolha política questionável, qual seja, a assunção da corte (e seus ministros) como árbitro sobre o que é aceitável em liberdade de expressão;
3) Injúria racial, discriminação religiosa, entre outros crimes, servem para proteger um aspecto da vida humana de feição coletiva (honra ou reputação social, por exemplo). A honra e a reputação não parecem ser valores intrínsecos, mas instrumentais, não obstante protegidos por leis criminais. Uma determinação mais clara entre a dignidade, como o valor intrínseco imune a um discurso odioso, porquanto independe da posição da pessoa na comunidade e fundamento dos direitos fundamentais e a proteção de valores coletivos sociais. O foco criminal no aspecto coletivo da reputação e honra pode dificultar a caracterização desses crimes e afetar a proteção da livre expressão, pois dependerão das autoavaliações ou de critérios judiciais imprevisíveis; por outro lado, a dignidade humana liberal pode não ser suficiente para proteger minorias religiosas ou étnicas de ataques a seu bem-estar.
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